sábado, 27 de março de 2010

Chove agora

Vejo as gotas de chuva a deslizarem pelo vidro como se o beijassem em segredo. Se ainda fosse capaz de sentir diria que era o perfeito mimetismo do Passado em que os teus dedos percorriam o meu rosto com a suave leveza do toque, feito seda, sempre que secavas as doces lágrimas que de tempos em tempos habitavam em mim. Dou conta do meu corpo prostrado no chão em que partiste num silêncio ensurdecedor. Pressinto a tempestade, o cheiro a terra molhada, o tilintar das folhas das árvores a caírem de tristeza. Preciso de um banho quente, de despir estas roupas grudadas na pele arrepiada, desfazer-me deste odor a sal. Quando entrei reparei nas tuas malas abandonadas no hall dos quartos, fiquei petrificada e daqui não mais saí. A bagagem não é muita, nunca ocupaste muito espaço, não guardas muitos artefactos, nem bibelôs, levas apenas uma mala de viagem solitária e um mísero saco de couro envelhecido onde a minha alma se enclausurou cuidadosamente, com o intuito de nunca se apartar da tua. Já não te sinto dentro destas quatro paredes, se conseguisse falar isso seria facilmente constatado pelo som do meu eco longínquo. Lá fora chovem gotas pintadas pelas cores do arco-íris, o ar está frio e húmido, a brisa que corre apressada vai revirando os guarda-chuvas do avesso como esqueletos frágeis e desengonçados. As pessoas não se olham e o júbilo das crianças, a chapinharem nos Oásis espalhados pela rua, ecoam como miragens no deserto. Chove agora. E lá fora a vida continua, ninguém se lembra de ti, mas todos te trazem no olhar perdido, a mesma brincadeira do “toca e foge” nunca morre, hoje entram todos por uma porta que não pretendem fechar até saírem de novo amanhã de manhã. Aqui sabe-me a ti, como se o teu oxigénio ainda pairasse no íntimo das paredes desta casa e eu vou respirando-te em pequenos sopros de vida como uma reanimação assistida. Volta depressa meu amor, não me deixes mais agonizar na tua ausência, leva os teus restos, as tuas malas, o teu cheiro, o teu ar, cada pedaço que deixaste para trás e por favor, deixa-me morrer em paz, ou então, devolve-me o coração, porque eu não sei viver sem ele.